Um homem que empilhava palavras.
Seu Henrique carrega uma pastinha de couro puída com recortes de jornal das matérias publicadas sobre ele e exemplares do livro que escreveu em homenagem à Seleção Brasileira na Copa do Mundo. Na época, estava otimista. “Jogar com o Brasil é complicado/Para os adversários o Brasil só joga pra ganhar/Essa copa nós vamos ganhar”.
Aos 67 anos, Henrique Pereira de Oliveira constrói poesias e casas. O ganha-pão vem da mão calejada de trabalhar na construção civil. Conheceu as palavras aos 17 anos, quando teve a oportunidade de segurar no lápis em vez da enxada. Mesmo assim, não passou da quarta série. Aos 12 anos, mesmo sem saber direito o que era exatamente ser escritor, já sonhava com o ofício.
“O meu objetivo maior era escrever. Eu dizia: ‘Cada letra que eu vou escrever eu vou considerar um filho meu’”, conta o pedreiro-poeta. É que ele achava bonito o sucesso. “Agora eu peço a Deus que eu tenho que fazer sucesso. Eu peço a Deus que ele não deixe o meu sucesso subir pela cabeça. O meu sucesso eu quero dividir com os brasileiros”, diz aos risos.
Trabalhou no comércio, em usina e em obras no Piauí, no Maranhão e, hoje, em Brasília. Ao falar, mistura um pouco dos diferentes momentos da vida. É que as palavras fluem melhor no papel mesmo. Computador? Nem sabe mexer. Ele só enfrenta mesmo o bloquinho e a caneta. Paga uma pessoa para digitar o texto para ele.
Foi com um pouco mais de 30 anos, quando trabalhava em uma construtora, que descobriu a poesia. Um gerente pediu aos funcionários que escrevessem uma homenagem pelo aniversário do dono da empresa. Quando pegou o papel e o lápis, saiu um poema. Colocou numa urna, junto com os colegas que tinham se disposto a falar bonito para o patrão. A dele foi considerada a melhor de todas. “Recebi até um elogio”, lembra.
“Falaram que eu era um gênio. Não tinha estudado quase nada e fazia aqueles poemas.”
A empolgação como poeta não durou muito. Mais uma vez o cotidiano engolia seu Henrique e suas palavras. Levar dinheiro para casa o afastava da escrita. Até que, em 2002, aos 55, decidiu escrever uma carta para a filha que estava doente. “E aí a carta terminou em poesia e eu pensei: ‘Ainda tenho o dom de escrever e não vou parar não’”. E seguiu escrevendo. Chegou a publicar um livro todo homenageando Lula, em 2013, quando ele era presidente. “O primeiro livro eu resolvi escrever foi porque o Brasil estava andando direito. Aí eu fiz até uma poesia dizendo que antes muitos trabalhadores só comia pé e osso. Depois do governo PT, os trabalhadores comia carne e sobrecoxa”, conta. Teve a honra de entregar o livro em mãos para Lula, em uma visita do ex-presidente ao Congresso Nacional. “E aí, não parei mais. Eu trabalho de dia e de noite eu escrevo.”
“Agora eu não estou mais trabalhando todo dia, porque eu estou me empenhando mais em escrever. Mas não tem como viver escrevendo porque não dá pra sobreviver do livro.”
Foto: Janine Moraes
Depois das homenagens à Lula e à Seleção Brasileira, escreveu um livro sobre as Olimpíadas, ainda inédito. Na gaveta tem também um sobre o cantor sertanejo Cristiano Araújo, que morreu em um acidente de carro em 2015. “Ainda não publiquei porque é caro. Então eu estou querendo ir na casa do pai dele ver se eu consigo um patrocínio”. Dilma Rousseff também tem uma homenagem pronta, mas na gaveta pelas mesmas razões financeiras que fazem outros manuscritos se acumularem.
Atualmente, seu Henrique trabalha em uma novidade: uma publicação homenageando os pedreiros. “Já até escreveram sobre isso - e não é que eu seja o tal não - mas do jeito do meu, em poesia, só tem o meu mesmo”, explica. “Eu não tenho nenhuma poesia lembrada aqui. Mas eu falo daquele pessoal que trabalha em altura, nos balancinhos e que na hora que chega no serviço liga pra esposa. Lembro que tem uma parte que fala assim: ‘Deus vai tomar conta de mim’”.
Foto: Janine Moraes
“Eu quero um livro com muitas páginas tratando de todas as profissões. Tooodas as profissões. Eu comecei dos pedreiros e falei só de pedreiro, pedreiro. Aí num momento comecei a falar até do inventor. No livro está até o inventor do avião”, lembra-se, no meio da entrevista.
A inspiração para tanto assunto chega mais fácil quando o trabalho braçal vai bem. “Eu só ando com um papelzinho no bolso e uma canetinha pequena, pra depois eu passar a limpo. Aí a inspiração chega mesmo. Mas é quando o serviço está dando tudo direito, na sexta-feira que eu estou indo pra casa com o cacau no bolso, aí é que chegam as inspirações mesmo pra escrever porque fico mais feliz”, diz rindo de novo, com a simpatia que lhe é inerente.
Casas ou poesias: nas mãos do pedreiro-poeta ou poeta-pedreiro são obras que ele constrói com devoção.
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Nota da edição: Uma vez por mês você acompanha, no PdH, uma republicação do Projeto Lupa.
Ele reúne depoimentos e fotos de profissionais ligados à arte de contar histórias. Apresentam escritores, roteiristas, jornalistas, contadores de histórias, dramaturgos, redatores publicitários, críticos literários, letristas musicais, entre tantos outros. São muitos personagens, com algo em comum: a paixão pelas palavras.
O texto de hoje é de autoria da Thaís Antonio e as fotos de Janine Moraes. A história do Henrique Pereira foi escolhida como parte de uma proposta de discussão sobre o quanto é custoso viver da própria escrita, principalmente em um contexto em que não há ajuda familiar, por exemplo. Até que ponto vale a pena insistir em um sonho? Como expandir a rede de apoio? Quais as maneiras de bancar a própria produção?
publicado em 08 de Novembro de 2016, 18:35
O Projeto Lupa publica relatos sobre pessoas ligadas à arte de contar histórias: escritores, roteiristas, jornalistas, músicos, contadores de história oral, entre outros. Tentamos sempre relacionar as dimensões prática e subjetiva da criação: Quais os caminhos para quem ama as palavras? Dá pra viver disso? Como é o processo criativo? Nossos textos buscam criar experiências de leitura prazerosas mantendo um olhar afetivo e singular sobre cada entrevistado.
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