Não sei porque, mas, muitas vezes, me fez lembrar de Incidente em Antares, do Erico Verissimo.
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O colombiano Gabriel García Márquez (1928-2014) foi o último grande contador de histórias do século XX - e, até prova em contrário, da própria literatura ocidental. Depois de cem anos marcados por revoluções literárias radicais, não eixa de ser surpreendente que ele tenha conquistado tamanha notoriedade - nem o Nobel lhe faltou; ganhou-o em 1982 - enquanto tentava apenas imitar o tom com que sua avó materna lhe contava episódios os mais fantásticos: sem alterar um só traço do rosto.
Em nenhum outro livro García Márquez empenhou-se tanto para alcançar aquele tom como neste romance. Assim, ao mesmo tempo em que a incrível e triste história dos Buendía pode ser entendida como uma autêntica enciclopédia do imaginário, ela é narrada de modo a parecer que tudo faz parte da mais banal das realidades.
Seria ingênuo procurar uma chave que explicasse toda a grandeza deste livro diante do qual o repertório de adjetivos torna-se espantosamente ineficaz. Porém, é razoável atribuir parte do êxito àquela contaminação, pelo real, do universo maravilhoso da fictícia Macondo. Aqui pesou muito a experiência jornalística de García Márquez. E também a sombra do tcheco Franz Kafka (foi depois de ler a primeira frase de ‘A metamorfose’ que García Márquez decidiu que seria escritor).
Mas, para além desses artifícios técnicos e influências literárias, é preciso que se diga que a atordoante sensação de realidade que transborda do livro deve-se ainda ao fato de que ele foi escrito, segundo o autor, para ‘dar uma saída às experiências que de algum modo me afetaram durante a infância’. Tome-se, por exemplo, a primeira frase de cem anos. Quando o escritor era pequeno, seu avô, coronel Márquez, o apresentou mesmo, maravilhado, ao gelo, tal como José Arcádio Buendía fez com o filho Aureliano. Do mesmo modo que José Arcádio, o avô de García Márquez também carregava, na vigília dos sonhos, o peso de um morto - o homem que havia assassinado. O coronel era marido de Tranquilina, aquela avó que encheu os primeiros anos e o resto da vida do neto Gabriel de histórias bem contadas.
García Márquez costuma dizer que todo grande escritor está sempre escrevendo o mesmo livro. ‘E qual seria o seu?’, perguntaram-lhe. ‘O livro da solidão’, foi a resposta. Apesar disso, ele não considerava cem anos sua melhor obra (gostava demais de ‘O outono do patriarca’, no qual o tema também está presente). O que importa? O certo é que nenhum outro romance resume tão completamente o formidável talento deste contador de histórias de solitários - que se espalham e se espalharão por muito mais de cem anos pelas Macondos de todo o mundo.
- Rinaldo Gama
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