É provável que nos falte consciência pra calibrar a possível realidade ou irrealidade da poesia. Podemos suspeitar que a realidade é uma questão de consciência ou visão profunda e que a maior consciência corresponde a mais realidade e menos irrealidade. Mas é necessário supor que para uma hipotética consciência ou visão total não haveria nada irreal, nem aquilo que mais se assemelhe a isso.
A poesia, sem dúvida, dá um passo mais além. Antes de tudo o poema revela-se como invenção da realidade. Mas a realidade não é apenas invenção e logo nos damos conta que o poema é também descobrimento de realidade. Compreendemos então a essência da poesia: A realidade só se descobre inventando-a. A poesia é a visão ativa: Visão que cria o que vê.
A visão poética é, além disso, visão verbal. Não nasce como posteridade à outra visão: vê com palavras. Primeiro há um impulso, um estado de fluidez. A visão cobre uma forma enquanto brota o poema. Não há então, como a priori havíamos dito, correspondência ou inadequação de uma forma verbal com respeito a uma forma verbal preexistente, por isso não podemos falar nem de fidelidade nem de traição em relação a isso. A realidade nasce aqui com a forma. Todo o resto - sentimentos, ideias, cultura, tradição, feitos, situações - são fatores convergentes que colaboram em maior ou menor grau com o nascimento dessa unidade de visão verbal e criadora que é o poema.
Vivo o poema como uma explosão do ser por debaixo da linguagem. Descubro aqui quatro elementos básicos: explosão, ser, linguagem e debaixo. Poderíamos nos aproximar deles dizendo o anterior de outro modo: o poema é a expansão abrupta de uma realidade fundamental que se gera através das possibilidades subjacentes da expressão verbal e não só por meio de sua capacidade significativa imediata.
Partindo daqui (ou talvez chegando) tenho sentido a flacidez e brandura de grande parte da poesia. Tenho buscado então uma poesia mais concreta em sua essência, com peso próprio, sólida, vertical. Acredito que o poema não consiste em variar os temas, e sim é uma questão de tom, atitude interior, configuração simbólica e manejo da linguagem. Tom: uma expressão decidida, naturalmente do fundo, rotunda e até às vezes cortante, ainda que se fale do mais escondido. Atitude interior: viver as próprias visões com consistência radical, sem cálculos nem temores , prolongando a vida interior até suas ultimas conseqüências, até que dentro e fora não se diferenciem, em uma contemplação quase religiosa da dinâmica profunda das formas. Configuração simbólica: potência íntegra da imagem, entendendo por tal não só a de raiz sensível, mas também aquela fundada sobre os giros mais penetrantes e originais do pensamento, evitando rigorosamente o difuso, com confiança plena na vigência de uma estrutura poética própria dos últimos alcances da inteligência, com a convicção de que sentir e pensar não são coisas distintas, com uma fidelidade como base ao desenvolvimento particular de cada núcleo poético e uma vivência ou experiência integral do poema como um organismo unitário. Manejo da linguagem: Concisão, nudez, concentração, renúncia ao decorativo e retórico, com uma espécie de animismo verbal (reconhecimento da vibração, o templo, a conduta e o ânimo de cada palavra) e um plasticismo figurativo, desperto nos sucessivos esboços de algo assim como uma despojada e, talvez inalcançável, parábola do espírito.
Me apaixona a forte humanidade de uma busca de classe como essa, seu desafio às normas e estereótipos, a densidade do nível onde se gesta a luta pela expressão, a intensidade do mergulho nas zonas mais esquecidas e, sem dúvida, mais vivas do real, a simbiose profunda de todas as projeções simbolizadoras, a paradóxica complementaridade e até uma sincronicidade entre o espontâneo e o reflexivo, o dito e o não dito, a vitória e o fracasso, o esperado e o inesperado, o possível e o impossível, o um e o outro.
Sou subjugado pelo amor que se funda e substancia nestes espaços vivos e a liberdade radical desse amor, que nos torna distintos entre o expressar-se e comunicar-se, entre solidão e companhia, entre ausência e presença, entre voz e silêncio, entre amar e pensar, entre tudo e algo. A palavra transfigurada de um homem solitário pode transformar-se ali, por debaixo, em um gesto misterioso e absurdamente magnífico da humanidade. A poesia pode então projetar esse gesto e abolir em um ato de amor a distância entre o homem e os objetos, entre o homem e a natureza, entre o homem e o homem, entre o homem e a morte. Mais que um vazio, essas distâncias são o músculo ao que é possível dar vida com o nervo da visão criadora, com a tatuagem inusitada de palavras em função e explosão do ser, para mover assim o mundo. A realidade está onde queremos que ela esteja, onde somos capazes de elaborar uma forma.
No coração de minha poesia está a crença de que o pensamento é mais concreto que todo o resto da matéria do mundo. Por isso, no coração de minha poesia há também um rosto.
Toda vida é apenas um âmago, o anúncio ou começo de um gesto. A poesia é também um âmago, mas seu gesto permanece, como se fosse algo a mais. O homem e sua linguagem empurrando implacavelmente seus limites, desvestidos de tudo quanto não seja limite, desvestindo-se daquilo que agora o é. A afirmação suprema é também o mais perto da negação suprema. A grandeza concreta da poesia, como a da vida, consiste em não estar acabada. Um salto sempre mais além, o salto que nos torna possíveis.
A partir de dentro, toda obra é um fracasso. Mas acredito ter buscado algo diferente. E essa busca, a partir de dentro ou de fora, não é um fracasso.
Nenhum comentário:
Postar um comentário