quinta-feira, 20 de julho de 2017

POLÍMATAS, CONSTRUTORES DE PONTES ENTRE OS SABERES

Existem conceitos que nós conhecemos, sabemos identificar, mas que por algum motivo não conseguimos condensar numa única palavra. Talvez porque o termo que satisfaça essa condição ainda não exista ou talvez porque não tenhamos dado a sorte de tê-lo encontrado antes! Recentemente, deparei-me com uma situação assim: por muito tempo vagava em minha mente um conceito, uma ideia abstrata e fugidia, que finalmente consegui capturar na palavra “polímata”! Para quem, como eu, não conhecia essa palavra, ela se refere a uma pessoa com largo conhecimento e aprendizagens em diversas áreas. A origem é grega (polymathes) e ela é formada pela junção de polys (muitos ou vários) com a raiz de manthanein (aprender). Fonte: online etymology dictionary.

Da etimologia, pulemos para a Wikipédia. Lá encontramos uma descrição do termo um pouco mais elaborada, além de um retrato, num distinto tom pastel, de um rosto conhecidíssimo: Leonardo Da Vinci. O meu sorriso foi inevitável.

Anos atrás li uma crônica de Rubem Alves (ele mesmo um polímata em minha opinião: é escritor, cronista, filósofo, psicanalista, educador, jardineiro, teólogo, se interessa por música, cinema, cozinha...) na qual dizia que hoje Leonardo Da Vinci possivelmente seria um desempregado(!), devido ao alto grau de mecanicidade do mercado de trabalho e à valorização da ultra-especialização. Reproduzo aqui o trecho do livro “A Alegria de Ensinar”: “Se o Leonardo Da Vinci tivesse vivido hoje, será que ele teria conseguido um emprego na IBM? Para começar, o seu curriculum vitae provocaria suspeitas. Um homem com interesses que vão da estética dos cavalos à construção de máquinas voadoras não parece regular bem.” Caso tenham gostado, segue o link para comprar o livro.

A crônica é excelente e eu não poderia concordar mais. Quando a li, tinha um pouco mais de vinte anos, já contava com uma variedade de experiências profissionais. Na época, acreditava que eu deveria esconder minha diversidade de interesses, seja no meu currículo ou numa entrevista de emprego, para que não suspeitassem que eu fosse maluco. Assim, não pude deixar de me identificar com uma história sobre Leonardo da Vinci tendo problemas em arranjar emprego! Mesmo assim, lá se foram alguns alguns anos (e empregos) até que eu finalmente me deparasse com a tal fugidia e obscura palavra que seria capaz de descrever tão bem um conceito tão precioso pra mim!

Antes de discutir sobre a polimatia e seus possíveis benefícios, eu gostaria de primeiro atentar sobre o sua suposta nêmesis: a divisão do trabalho. Para quem não está seguro, ou familiarizado com o termo, segue a definição da "santa" Wikipédia: “A divisão do trabalho é uma característica fundamental das sociedades humanas, devida ao fato de que os seres humanos diferem uns dos outros quanto a suas habilidades inatas ou adquiridas. Em certo estágio do desenvolvimento de suas comunidades, os indivíduos percebem que podem satisfazer melhor as suas necessidades ao se especializar, ao se associar e ao trocar, em vez de produzir, cada um de maneira autárquica, aquilo que precisa consumir.” Pondo desta forma a divisão do trabalho parece ser muito benéfica. E, de fato, é. Sem ela a espantosa complexidade da sociedade moderna seria impossível. Decerto, eu não estaria escrevendo num computador cujo funcionamento é um mistério para mim (e para a esmagadora maioria das pessoas) se não fosse pela divisão do trabalho.

Contudo, gostaria de atentar que por trás de uma boa ideia podem morar perigos. É comum ideias serem mal interpretadas, distorcidas e retorcidas, pelos mais diversos motivos, gerando consequências e danos reais. A meu ver, a sociedade desenvolveu o costume de pensar sobre a especialização da seguinte forma: "ache uma área que você seja bom e dentro dela um campo específico. Dentro desse campo, ache uma habilidade que você se destaque e seja muito bom nela. Assim será mais fácil garantir um bom emprego". Essa linha de raciocínio parece fazer sentido. Afinal, o mercado de trabalho é selvagem e competitivo; logo, se você é um especialista, você desfrutará de vários benefícios, tal como (1) redução do número de seus competidores diretos; (2) credibilidade: se você investiu tanto tempo em algo, você deve ser bom nisso; (3) poder: a maior parte das outras pessoas será ignorante no que você é bom; (4) aprovação social: você fará parte de uma instituição restrita, exemplo: possuir CRM, OAB, CREA, etc.; e (5) remetimento: você será lembrado por ser bom em algo, “o cara que entende dessa ferramenta é o fulano!”.

Sendo assim, torna-se fácil defender a tese de que ser especialista é desfrutar de uma vantagem competitiva. Quem estudou biologia sabe que uma vez que uma característica vantajosa e reproduzível aparece, ela tende a dominar o ambiente. Assim foi com a especialização. E onde fica o polímata, aquela pessoa que gosta de muitas coisas ao mesmo tempo, o homem ou mulher cuja diversidade de paixões lhe dificulta submergir num único oceano? Não fica?

O primeiro ponto que gostaria de ilustrar sobre a polimatia é aparentemente contraditório: o polímata não é um generalista, ele é um grande especialista!

Todo aquele raciocínio exposto anteriormente contém um “bug”. Ele induz a algo que seria salutar revisarmos: a crença que a melhor estratégia para uma pessoa é se desenvolver ao máximo em apenas um domínio ou área do conhecimento. Quando transformamos essa crença num dogma, deixamos de atinar para várias questões importantes: e se a maior habilidade duma pessoa for exatamente a capacidade de aprender? E se sua plasticidade de aprendizado em diversas áreas consegue produzir sinergias de outra forma inalcançáveis? E se a aprendizagem de processos em um campo do conhecimento pode ajudar em outros domínios? E se for possível correlacionar e conjugar diferentes talentos?

Nesse ensaio vou dar uma ênfase especial à primeira dessas proposições: o polímata como um especialista-mor em aprender. Uma pessoa cujo amor e vício é aprender, e que é excelente nisso! Uma proposição derivada desta é que o polímata é um curioso particularmente insaciável. Embora a curiosidade seja uma característica presente em todos os seres humanos, o polímata é aquele que entrou várias vezes na fila para receber o dom da curiosidade.

A proposição do polímata como aprendiz-mor vai além da ideia tradicional do polímata como o gênio super eminente e mega habilidoso em várias áreas (leia-se nossa imagem idealizada de Leonardo Da Vinci). É muito difícil se identificar com um modelo de polimatia tão elitista. Tal modelo faz as pessoas pensarem: "esse tipo de coisa não é pra mim." No entanto, o desejo e vontade de aprender está em todos nós! A curiosidade insaciável, a busca pelo aperfeiçoamento (em uma ou mais áreas) e auto-realização são características universalmente humanas, eu até diria, são as mais humanas de todas as características!

Com isso, gostaria de avançar para os próximo pontos; o primeiro se refere ao papel da polimatia no nosso passado (inclusive o passado muito remoto) e no presente; e segundo concerne a como a polimatia pode ser fundamental para o nosso futuro.

Todos já ouvimos muito falar do ser humano como um generalista em comparação com as outras espécies; o ser humano não é o melhor em nada. Não é o melhor nadador, não é o melhor corredor, não é o mais forte, não tem os dentes mais afiados. Acontece que essa ideia é falsa! Nós somos, na verdade, extremamente especializados... e advinha qual a característica mais proeminente na nossa espécie? Nosso enorme e consumista (em termos energéticos) cérebro! Posto isso, podemos examinar qual caminho que nos fez chegar a ter um cérebro tão grande e gastador.

Uma tese interessante sobre o cérebro diz que sua principal razão de ser é permitir que o organismo seja capaz de se movimentar. Essa tese tem um insólito defensor: um organismo que vive no fundo do mar. Sua vida consiste em duas fases: uma móvel e outra imóvel. Na primeira fase, ele vaga pelos oceanos à procura de alimento. Na segunda fase, ele se assenta num coral e permanece lá imóvel até sua morte. Sabe qual a primeira coisa ele faz quando ele chega ao segundo estágio? Ele digere seu centro nervoso (leia-se cérebro) para virar alimento, uma vez que este não é mais necessário. Se pensarmos cuidadosamente, perceberemos que o movimento é uma coisa muito complexa; isso fica claro quando tentamos programar computadores para se mover como seres humanos. Enquanto hoje já temos computadores que vencem campeões de xadrez, para podermos construir um robô que consiga colocar água num copo sem derramar é preciso uma tese de doutorado de quatro anos numa grande e rica universidade americana. Embora seu algoritmo seja uma façanha, sua qualidade de movimento é muitíssimo inferior ao de uma criança de seis anos. Se quiséssemos que o robô, além de colocar água no copo, também conseguisse movimentar peças de xadrez, lá seriam mais 4 anos de tese e de programação...

Para se movimentar rápida e efetivamente é preciso ter uma incrível capacidade de leitura do ambiente externo. É necessário identificar num meio de um turbilhão de estímulos o que é relevante, e o que não é; o que é ameaça, o que é comida, o que ruído, o que vale prestar atenção, etc., e ainda saber agir em cima de tais informações! Ler, significar, armazenar, concatenar e interagir com as coisas requer um software complexíssimo. O que leva esse software a um outro patamar de efetividade e adaptabilidade no mundo é uma capacidade incrível: a habilidade de aprender.

A capacidade de aprender talvez seja a característica humana mais proeminente. Chimpanzés aprendem, corvos, baleias e golfinhos também. Porém, nenhum deles aprende com a eficácia, rapidez e qualidade do ser humano. Somos máquinas de aprendizado. Máquinas que nascem “inúteis”. Precisam de muitos anos de “inputs”, muito tempo gasto apreendendo e significando as coisas do mundo (mais tempo do que a vida média de muitos mamíferos pequenos) para podermos atuar de forma efetiva no nosso mundo; para sermos capazes de se comunicar com eficácia, ganhar a vida, criar filhos, e sermos respeitado pelos nossos pares como um agente plenamente capaz.

O passado definiu o engrandecimento do cérebro como uma boa estratégia. Por algum acaso, em alguma espécie, todo o ambiente para o desenvolvimento do cérebro era propício. Por anos a fio foram premiados os cérebros maiores, que eram capazes de melhor processar os estímulos externos e interagir com o mundo e, assim, cada vez mais, num ciclo de retorno positivo, os cérebros iam crescendo e a sua capacidade foi potencializada até culminarmos (não que este seja o cume de alguma coisa) nesse bicho intrigante que somos nós. Esse bicho que é capaz de ao menos vislumbrar algum entendimento do universo, e inclusive - e isso é muito importante - alterar o curso de sua própria evolução.

Eis o presente, no qual essa espécie decidiu se subdividir de várias formas: por causa de territórios imaginários e arbitrários que cada grupo se julga pertencer, por causa de trabalho, de tarefas, de moedas, de línguas, de gostos, de cultura, etc., etc., etc.

Além da habilidade de aprender, nossa espécie sofreu outro tipo de pressão evolucionária: uma tendência para o pensamento de “nós versus eles”. É o "meu grupinho" versus os outros; o meu time contra o deles; a minha organização contra a concorrência; enfim, "nós" contra "eles".

Este tendência nos leva a cisão, ao afastamento do outro. Afinal, o "outro" pertence a um mundo que me é alienígena. Assim, acabamos nos isolando em ilhas de vivências e experiências que dificilmente se conectam com outras ilhas. Quer um exemplo? Pergunte a um advogado de contratos se a área de conhecimento dele em alguma forma ou momento se assemelha à programação. A menos que ele já tenha desenvolvido uma visão de mundo polímata, as chances são que sua resposta será um rotundo não. Rotundamente enganado ele estaria nesse caso. Várias facetas do Direito se assemelham a códigos de programação, isso pode ser evidenciado pela existência de um projeto que efetivamente transcreve contratos jurídicos para uma linguagem de programação.

“No man is an island”, já dizia o poeta inglês do século XVII John Donne. Nenhum homem é uma ilha, ou ao menos não deveríamos ser. A especialização, embora positiva em muitos aspectos, carrega consigo o germe da ruptura com o resto do mundo, o que eu chamo de esquizoidia. O mundo atual clama cada vez mais por pontes entre áreas, conhecimentos e diferentes visões de mundo. E quem fará essas pontes? Outras ilhas? Robôs que precisam de 4 anos de programação pra cada tarefa? É óbvio que não. Farão essas pontes as pessoas que são curiosas, anseiam aprender, que não aceitam viver encarcerados numa só ilha: os polímatas.

Há vários autores e pensadores hoje clamando por mais interdisciplinaridade, mais conectividade, uma visão mais holística... Contudo, sabemos que as pessoas com características polímatas que descrevi acima podem esperar encontrar grandes dificuldades ao lidar com as atuais instituições escolares e organizações. Ainda assim, se eles forem capazes de manter a chama da polimatia acesa, mesmo frente ao atual desencorajamento institucional, eles chegarão num patamar muito interessante, onde a vida conteria mais oportunidades, mais experiências e mais pluralidade. Percebo que os polímatas que não se submeteram completamente às pressões para se conformar e mantiveram viva sua natureza pluri-investigativa se tornaram profissionais com muito mais chances de avançarem ideias interessantes e criativas.

No futuro, talvez tenhamos até polímata como um cargo ou uma classificação profissional: os “construtores de pontes" entre áreas, departamentos e setores oficializados pelas empresas. Isso não está muito distante de outros fenômenos parecidos que estão ocorrendo. Por exemplo, vários estudos apontam o aumento no número de empregos na vida de uma pessoa e a redução do tempo médio em cada emprego. Além disso, já virou lugar comum dizer que estamos educando nossas crianças para empregos que ainda não foram inventados.

Num mundo volátil, complexo, incerto e ambíguo como esse, a capacidade de aprender deverá ser cada vez mais valorizada e, como propus em parágrafos anteriores, o polímata é aquele que é excelente e apaixonado por aprender.

Se até um passado recente, qualquer candidato a polímata encontrava uma série de restrições à ampliação do seu conhecimento, hoje um polímata com acesso à internet tem o mundo em suas mãos. Abaixo seguem alguns exemplos do que estou falando:

www.edx.org/ - um site que disponibiliza de graça cursos nas melhores universidades americanas como Harvard, MIT e Berkeley.

https://www.coursera.org/courses - outro site com ainda mais cursos que o edx e com maior amplitude de universidades e disciplinas.

http://www.ted.com/ - lá você encontra “talks”, palestras muito interessantes, curtas (18 minutos geralmente) e frequentemente geniais a respeito de vários temas.

www.khanacademy.org – incrível, o slogan é: “aprenda quase qualquer coisa de graça”. É simplesmente uma escola melhor que a escola, eles ainda inventaram um sistema de “skills” muito parecido com a de um RPG.

http://www.howstuffworks.com/ - como as coisas funcionam, outra fonte inesgotável de saber.

http://duolingo.com – site que ensina línguas de graça enquanto ajuda a traduzir a internet. Estou aprendendo francês lá: MikeAraki é meu usuário.

http://dictionary.reference.com/ - dicionário de inglês (a língua da web) com exemplos, etimologia. O melhor dicionário online que conheço.

Isso sem contar o youtube (existe de tudo lá, só procurar), wikipedia, e google tradutor.

É, caros leitores; “Ó admirável mundo novo, que encerra criaturas tais!”, diria Shakespeare. A polimatia é algo que sempre esteve conosco e sempre estará. Podemos ter tido altos e baixos em relação à sua valorização e eminência, e espero que o futuro se desenrole numa crescente ascensão fomentada por pensadores que carregam em si o germe da polimatia. Na verdade, suspeito que todos os grandes gênios da humanidade desfrutaram de algum grau de características polímatas, mesmo aqueles tidos como super especializados, tal como Beethoven ou Van Gogh. Sobre esses últimos, tenho lido coisas surpreendentes sobre seus interesses e sua vida, e não acredito que alguém seja capaz de maravilhar gerações e gerações sem algum entendimento mais profundo do como conectar sua arte - sua ilha de excelência - com a percepção e experiência de todo o resto do mundo. E esse "todo o resto do mundo" diz respeito a nós; os apreciadores de Van Gogh e Beethoven, em sua maioria, não vivem na ilha da música ou da pintura, e mesmo assim conseguem perceber e sentir que há algo de único e especial na obra deles. Desconfio que gênios como eles, além de estudarem anos e anos sua arte, mantiveram a capacidade de conectar sua atividade a alguma outra coisa que lhes diferenciasse, mesmo que essa coisa fosse um desejo de grandeza ou de redenção. Desconfio que pessoas que optam ou se resignam a tornarem-se ilhas tendem a perder a capacidade de encantar os outros.

Por fim, gostaria de lembrar que todos nós temos a centelha da curiosidade e fomos dotados de uma enorme vontade de aprender (caso ainda haja dúvidas, observe uma criança interagir com o mundo). Isto é o cerne da polimatia. A centelha da curiosidade é talvez o mais bonito dos legados deixados pelos nossos ancestrais. Que façamos o melhor com tal legado e que ele nos leve às estrelas e a uma existência muito mais completa, recompensadora e pujante!


Apêndice:

Algumas citações de livros que descrevem alguns traços de polimatia:

“Esse homem, de estofo tão flexível que podia viver em qualquer nicho da existência humana...” – Jack London, em Martin Eden.

“Bowman foi um aluno por mais da metade de sua vida, e continuaria a ser até que ele se aposentasse. Aos trinta e cinco, ele já adquirira tanto conhecimento quanto dois ou três graduações universitárias iriam prover. Ele nunca foi capaz de ficar interessado em apenas uma única matéria, e isso o fez bastante apropriado para seu atual trabalho [astronauta]... com a ajuda do enorme banco de dados de HAL [o computador], poderiam resolver quaisquer problemas que pudessem aparecer durante a viagem” – Arthur Clarke, em 2001, uma odisseia no espaço.


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