quinta-feira, 20 de julho de 2017

A ARTE DA PERIFERIA COMO MATERIAL DE ESTUDO

No ano passado, recebi um convite do (até então desconhecido) Rene para auxiliá-lo em um trabalho que ele estava fazendo em seu mestrado. Para isso, convidei ele para visitar o Sarau do Grajaú na época. Batemos um papo enquanto ele assistia ao sarau, fazia anotações e eu lhe mostrava meus trabalhos, que foram muito convenientes em relação à temática que ele estava trabalhando.

Tomo a liberdade de publicar aqui algumas respostas às perguntas que ele conduziu a mim. Mas, se alguém se interessar, o texto completo pode ser conseguido com ele (renehernande@ig.com.br).


A ARTE DOS SARAUS NA PERIFERIA COMO AGENTE TRANSFORMADOR DO HOMEM NA SUA INTER-RELAÇÃO COM SEU HABITAT

Histórias de vidas

Este tipo de abordagem biográfica visa captar a interação que existe entre a história do indivíduo e a história coletiva, assim, nessa perspectiva, se insere a proposta do uso da história de vida, como método de pesquisa que busca compreender grupos ou a coletividade, a partir de trajetórias de vida individuais.


O coletivo Sarau do Grajaú, por um de seus frequentadores: Daniel Brito

A atividade cultural que ocorre no Sarau do Grajaú não fica restrita ao bar do Haway. Há uma itinerância. O coletivo leva sua arte para outros locais onde quer que haja um evento cultural em que seja solicitada sua presença.

O bar do Haway, o espaço onde ocorre o evento sarau, não é mais apenas um local para se beber, por que a arte transformou-o de tal forma que fez com que a sua vizinhança o percebesse como um centro cultural. O centro cultural do sarau conectou a comunidade com a arte de seus habitantes, participa dos eventos e se sente representada ali. Nesse centro cultural no bar Haway há uma biblioteca comunitária com livros doados pela própria comunidade. E, ao participar dos eventos, a comunidade sente-se representada, na região.

Nos bairros mais centrais há muitos centros culturais mas na periferia há uma carência desses espaços. Os saraus suprem parte dessa deficiência ao fazer com que o indivíduo não precise se deslocar para pontos centrais pois ele pode encontrar tudo o que necessita no bairro onde vive. Há diversidade e apenas no entorno do Sarau do Grajaú há mais de cem coletivos culturais.

O que tem tornado o Sarau do Grajaú visível paro o público é exposto com propriedade por Daniel Brito: “O coletivo Sarau do Grajaú tem se tornado conhecido com a exibição do documentário “Grajaú em foco” sobre a atividade artística* do bairro, com aporte financeiro da prefeitura de São Paulo do programa de Valorização de Iniciativas Culturais (VAI). Pois abordamos as diversas vertentes artísticas, além da poética, temos entrevista com grupos musicais, das artes cênicas, das artes visuais etc.”


Daniel Brito – sua história, sua arte

Residente do Grajaú, Daniel Brito é um rapaz de 23 anos (em 2016) com tom de voz grave e forte, e dono de um olhar que revela ser ele um bom observador. Foi extremamente sociável mas formal. Vez por outra seu olhar era atraído por uma bela moça que passava, mas mesmo isso não o fazia perder o foco com facilidade.

Estudante de análise e desenvolvimento de sistemas na FATEC, mora com a mãe e irmã e trabalha como assistente administrativo numa empresa na Vila Olímpia, zona nobre, na zona sul de São Paulo.Costuma fazer caminhadas em torno do local de trabalho, como um explorador, e ao fazer isso sente que a cidade se tornou presente em sua vida. Começou a perceber a paisagem urbana do local onde caminha. Caminhar sem obrigação de fazer isso, influenciou sua sensibilidade na relação entre seu eu e a cidade.


Como a arte chegou a Daniel Brito? Conte-me sua história

Quando era criança era muito curioso gostava de desmontar os objetos para tentar descobrir como eles funcionavam.

Na escola foi um menino “normal”; tinha muitos amigos e com alguns mantém laços de amizade até hoje. Era muito estudioso mas não sofreu bulling por isso, era bem aceito pelos colegas.

No ensino médio aconteceu o primeiro contato com o pensamento crítico nas aulas de filosofia. Acredita que pode ter sido ai que foi plantada a semente de uma visão crítica que, aos 17 anos apareceria com força quando, ao fazer o cursinho, se deparou com aulas que tinham como foco o questionamento do homem e suas relações.

Percebeu que há uma série de interesses que moldam a geopolítica no mundo. Seus professores, ao incitar o pensamento crítico fizeram com que ele percebesse o prazer gerado por essa forma de raciocínio.

Contudo, um filme foi fundamental para esse despertar existencial e percepção crítica: Sociedade dos Poetas Mortos . O encantamento e o impacto que o filme causou em sua vida foi determinante.

Perguntado o porquê de o filme ter causado um efeito transformador em sua vida Daniel respondeu que o filme lhe impactara por que o fez refletir sobre sua condição como ser humano, sobre seu passado e o que almejava para o futuro.

E Há uma cena que faz referência ao pensamento existencialista por meio de uma citação de Thoreau: "Eu fui à Floresta porque queria viver livre. Eu queria viver profundamente, e sugar a própria essência da vida, expurgar tudo o que não fosse vida; e não, ao morrer, descobrir que não havia vivido."

E reforça que há outro diálogo que igualmente ficou marcado em sua mente, entre John Keating, o professor interpretado por Robin Williams, e seus alunos:

"Apanha logo os seus botões de rosa... Por que ele usou esses versos? Porque tem pressa? Não! A resposta é simples... porque somos alimentos para os vermes, meus caros... Acreditem ou não, todos nós nesta vida um dia vai deixar de respirar, vamos ficar frios e morrer... Queria que se aproximassem e que examinassem alguns rostos do passado... Vocês já passaram por eles muitas vezes, mas quase nunca chegaram a olhar direito. Eles não são diferentes de você. O mesmo cabelo, cheios de hormônios, como vocês... Invencíveis, como vocês se sentem. O mundo é deles. Eles acham que estão destinados a grandes coisas, como muitos de vocês. Os olhos estão cheios de esperança, como os de vocês. Será que esperaram até tarde demais para fazer de suas vidas um décimo do que eram capazes? Porque, cavalheiros, agora eles estão mortos e enterrados, viraram fertilizante. Mas se escutarem bem, se vocês se aproximassem melhor, ouvirão o legado deles para vocês... Aproximem-se, escutem... Estão ouvindo? Carpe... Carpe... Carpe Diem... Aproveitem o dia, rapazes... tornem suas vidas extraordinárias..."

Daniel Brito impõe uma reflexão: “Imagina isso na mente de um jovem que está buscando dar um sentido para sua vida”

Existe ainda uma outra frase que gosto muito também, inclusive está na orelha do Protestizando:

"Para a maioria dos existencialistas, dois eram os modos privilegiados de os humanos aceitarem e enfrentarem sua finitude: através das artes e da ação político-revolucionária. Nestas formas excepcionais da atividade, eles seriam capazes de dar sentido à brevidade de suas vidas."

E assim surgiu sua arte. No começo era uma arte essencialmente subversiva em que havia uma explosão de emoções e sentimentos, basicamente da relação carnal entre um homem e uma mulher.

Mas Daniel, acrescenta que teve como inspiração grandes pensadores: Sócrates por ser um questionador, na Grécia Antiga; Alan Turing pela revolução tecnológica promovida pelo seu trabalho e Leminski pela inspiração poética.

Os saraus começaram a fazer parte de sua vida entre os 18 e 19 anos quando tomou conhecimento do Sarau do Grajau, numa entrevista ao projeto “TV Grajaú” de um coletivo cultural do bairro.

Ao frequentar o Sarau do Grajaú, o contato tanto com artistas feministas quanto com membros da comunidade LGBT ajudou a lapidar seus poemas – que, em parte, continuam focando na sensualidade, porém com mais sutileza.

A influência que esses grupos exerceram em suas poesias se deu no sentido de deixar de reproduzir valores de uma sociedade machista e patriarcal, procurando respeitar os variados tipos de relações entre as pessoas.

Com o tempo percebeu que a poesia da periferia é uma arte marginalizada, pois em termos de publicação, as grandes editoras publicam obras de apenas alguns autores, normalmente famosos; desse modo, os artistas da periferia ficam marginalizados pois os temas que abordam, na opinião de Daniel, não é de interesse dessas editoras.
Por conta dessa dificuldade começou a divulgar seus poemas por meio de fanzines, uma publicação alternativa e independente, com pequenas coletâneas de seus poemas para distribuição para amigos e frequentadores de saraus.

Mas ao ter contato com os livros publicados por amigos, visualizou a possibilidade de publicar seus poemas dessa forma. Para Daniel, um livro tem um valor especial. Publicar poemas num livro é dar a eles um valor maior. O livro valoriza seu conteúdo.

Para fazer de seu sonho uma realidade, aos 22 anos, investiu $ 1.500 reais na edição de cem exemplares do seu primeiro livro de poemas: Protestizando. Como sabe manipular softwares gráficos, a diagramação foi feita por ele mesmo, o que barateou o custo da publicação.

Um ano depois publicou A Ler Vazios, seu segundo livro de poemas.

Mas é no sarau onde se sente bem à vontade. Lá ele está entre pessoas queridas e é onde se sente bem.

E vê que outros sentem o mesmo. No Sarau do Grajau, não se tem como ideal de valores, a fama ou o dinheiro, pois todos que ali estão, preenchem suas vidas com a arte que veem e expressam.

Brito vê os saraus como um espaço para os artistas de bairro mostrarem sua arte e se conectarem pois ali formam uma rede de amigos que relaciona as pessoas que têm talento e têm arte e não tinham um espaço onde divulgar.

A rede de amigos que se forma nos saraus permite maior divulgação de seus livros.


A temática nos poemas de Daniel Brito

Alguns de seus poemas, têm basicamente, temática sensual mas nem sempre dirigidos a uma mulher específica, a que ele denominou de mulher “X” (e não lhe foi perguntado quem era ela) mas em grande parte das vezes, há uma mulher idealizada.

Sente-se que há influências variadas na forma como modela seus poemas: de poetas femininas que fazem poesias eróticas, do que vê nas apresentações de pessoas do grupo LGBT ou de feministas que frequentam o Sarau do Grajaú e, também, de outras escritoras e artistas, como a escritora francesa Anaïs Nin.

Da temática sensual, que foi um foco mais presente, em seus poemas, nos primeiros anos de sua arte, Daniel passou a tratar de variados assuntos: o cotidiano das ruas, a situação política do país, o aquecimento global, o amor, o conflito de classes e a desigualdade social.

A temática social é marcante em grande de seus livros. Assim como outros artistas da periferia, ele destaca a questão social como um foco presente na maioria de seus trabalhos: a situação do trabalhador, o transporte público, as relações entre o capital e o proletariado, a violência cotidiana, o vai e vem das pessoas no espaço público.

Atualmente, divulga seus poemas no facebook e no seu blog Polymatus e transborda, democraticamente, sua arte através de socrastickers – adesivos com poemas escritos à mão, que são colados em variados locais pelo bairro.


Seu futuro, seus anseios, seus sonhos

Questionado quanto ao que anseia, ao que espera em termos de futuro ele responde:

“No futuro eu pretendo conciliar o meu trabalho artístico com a tecnologia, seja para minha subsistência (área profissional) ou para algo voltado para progresso social. Espero que surjam tais oportunidades. Fora isso, pretendo fazer outras graduações futuramente, não tenho estimativa. Filosofia é uma delas. E pretendo publicar muitos outros livros.”


A despedida e a surpresa: o tema da pesquisa nas linhas de Daniel Brito

Ao terminar o bate-papo, Daniel Brito mostra seus dois livros: Protestizando e A Ler Vazios, que faço questão de obtê-los. A grata surpresa é que entre os poemas de Protestizando, consta um relacionado ao tema de à dissertação do mestrado: a ilha de calor, citado a seguir:

Ilhas de calor

Alastram-se pelo globo
As ilhas de calor;
Temperaturas alarmantes,
A cinza predomina como cor.

Na segunda natureza
Impera a pavimentação.
O que existe da primeira
É um resquício de vegetação

Arquiteturas distintas
Expõem as desigualdades sociais,
Enquanto as ilhas de calor
Rumam à proporções continentais.


Um poema carregado de significados: a relação do indivíduo com a cidade

E, ao analisar mais atentamente as linhas do poema “ilhas de calor” vejo ele falar da “segunda natureza” o que me remete à Milton Santos e à Karl Marx quando (SANTOS, 1979, p.10) define que como o espaço é organizado socialmente, espaço e natureza são sinônimos, desde que se considere a natureza como uma instância transformada, uma segunda natureza, conforme Marx a denominou.

O espaço, dessa maneira, corresponde às transformações sociais feitas pelos homens. O espaço reproduz a totalidade através das transformações determinadas pela sociedade, modos de produção, distribuição da população, entre outras necessidades, desempenham funções evolutivas na formação econômica e social, influencia na sua construção e também é influenciado nas demais estruturas de modo que torna um componente fundamental da totalidade social e de seus movimentos.

O que as sensações demonstradas por Daniel em seus poemas, remete às análises do corpo a que Merleu-Ponty deu especial atenção: “a obra de arte está colocada como campo de possibilidades para a experiência do sensível, nãocomo pensamento de ver ou de sentir, mas como reflexão corporal” (NOBREGA. 2008, p. 398).

Nesse poema, fica claro como o corpo de Daniel sente a cidade: “temperaturas alarmantes, a cinza predomina como cor” remete às sensações percebidas pela pele e a percepção de uma cidade cinzenta aos olhos; “Impera a pavimentação (...) vestígio de vegetação” expõe o calor sentido pelo corpo a sensação de que a natureza na forma primitiva, que agrada aos olhos e gerava conforto térmico já não existe mais; “desigualdades sociais” traz a sensação de dor diante de uma sociedade que não vê a todos como irmãos e que, portanto, têm os mesmos direitos.

O indivíduo percebe por sensações o seu meio e as palavras expressa o que sente. Olhos que veem uma realidade nem sempre agradável, corpo que sente o calor o frio o vento, mente que indaga, reflete e conclui; e, a realidade está ali, contida num poema.

Todo o meu aparelho corporal se reúne para alcançar e dizer a palavra, assim como minha mão se mobiliza espontaneamente para pegar o que me estendem [...]. O ‘eu’ que fala está instalado em seu corpo e em sua linguagem não como numa prisão, mas, ao contrário, como um aparelho que o transporta magicamente à perspectiva do outro (MERLEAU-PONTY, 2002, p. 41) apud Nobrega (2008. p. 399)


Referências:

CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. Editora Ática, São Paulo, 2000.
HAPKE, Ingrid. Evento na Alemanha promove a literatura marginal brasileira. Mai. 2013. Disponível em <http://conexoesitaucultural.org.br/noticias/evento-na-alemanha-promove-a-literatura-marginal-brasileira/ > Acesso em: 19 out. 2016
JACOBS, Jane. Morte e Vida nas Grandes Cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
NOBREGA Terezinha Petrucia da. Merleau-Ponty: o corpo como obra de arte e a inexatidão da verdade. Cronos, Natal-RN, v. 9, n. 2, p. 393-403, jul./dez. 2008 < Disponível em: < https://periodicos.ufrn.br/cronos/article/view/1784/pdf_34 > Acesso em: 20 outubro 2016
ROCHA, Eduardo. Hip-hop & Sarau: O Capão Redondo como centro da luta cultural. Disponível em < http://www3.fe.usp.br/secoes/inst/novo/agenda_eventos/inscricoes/PDF_SWF/12108.pdf > Acesso em 19 mai. 2016
SALIBA. Elias Thome. Tempos de villa Kyrial. Revista USP. São Paulo, n. 50, jun 2001 disponível em < http://www.journals.usp.br/revusp/article/viewFile/35699/38418 > Acesso em 12 nov. 2016
SANTOS, Milton. Espaço e Sociedade. Petrópolis: Vozes, 1979.
SILVA, José Carlos Gomes. Do Hip-Hop ao Sarau Vila Fundão: jovens, música e poesia na cidade de São Paulo. Cadernos de Arte e Antropologia, n° 2/2012, pag. 39-54 Disponível em < https://cadernosaa.revues.org/626 > acesso em 5 de dez. 2016
STACHELHAUS, Heiner. Joseph Beuys, Traducción Godo Costa. Parsifal Ediciones. Barcelona, 1990.
TENNINA, Lucía. Saraus das periferias de São Paulo: poesia entre tragos, silêncios e aplausos. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 42, p. 11-28, jul./dez. 2013 Disponível em < http://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/9989/7304 > Acesso em 25 out. 2016

Foto: Antonio Miotto

Nenhum comentário:

Postar um comentário