quarta-feira, 19 de julho de 2017

COMO FUNCIONA A POLIMATIA, POR QUE TEMPOS POUCOS POLÍMATAS, E POR QUE ISSO É RUIM

 Excelente texto do Michael Araki que foi publicado no seu blog Ensônicas.

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Um dos problemas para se compreender a polimatia é que ela tem sido vinculada a conceitos muito amplos e vagos, tal como “disciplinas”, “campos do conhecimento”, ou “áreas do saber”. Conceitos extremamente amplos como esses podem fazer pouco sentido ou podem parecer arbitrários quando precisamos analisar a natureza da construção de um conhecimento polímata.

No esforço de compreender melhor como podemos chegar ou obter a condição de polímata (i.e., deter alto grau de conhecimento, experiências e aprendizagens em múltiplas áreas, algo que eu batizei em outros trabalhos de Polymathic Zustand; Araki, 2015) eu propus um novo construto chamado traço polimatia (Trait Polymathy):

O traço polimatia se refere à facilidade e/ou potencial de alguém para formar esquemas poderosos em múltiplas áreas do conhecimento.

Dessa forma, para entendermos melhor o traço polimatia (e a polimatia em si), precisamos nos abster um pouco de unidades de análise muito amplas como “área do conhecimento”, “campo de conhecimento” e “disciplina”, e se concentrar em unidades de análise mais básicas para a construção do conhecimento, como o esquema. Segundo Piaget and Cook (1952), esquemas são categorias de conhecimento que nos ajudam a interpretar e compreender o mundo. Para que o conceito de esquema seja ainda mais útil para analisarmos a Polimatia, eu utilizo, além de Piaget, princípios aprendidos com a filosofia pragmática (cf., Peirce, 1878, 1974) para chegar a uma definição incrementada do construto esquema:

Esquema é uma unidade de conhecimento provisional, robusta o suficiente para que uma pessoa esteja preparada para agir de acordo com ela.

É importante, desde já, notar que o esquema é provisional, pois, mesmo na visão original de Piaget, um esquema engloba um processo permanente de construção e reconstrução. Um esquema não é, necessariamente, uma entidade perfeita. Ou seja, na medida que as experiências acontecem, novas informações são usadas para modificar, adicionar ou alterar esquemas previamente existentes (Piaget & Cook, 1952)

Então, o que seria, na prática, um esquema, e o que isso tem a ver com a polimatia?


Um exemplo de esquema

Digamos que você esteja querendo aprender a língua inglesa. Como falante de português, você possui um esquema sobre como modificar frases do tempo presente para o tempo passado. Se fôssemos descrever como esse esquema funciona, possivelmente se assemelharia a algo do tipo: “para se mudar uma frase do presente para o passado, deve-se mudar a conjugação do verbo”. Daí, na aula de inglês você descobre que, para se fazer perguntas naquela língua, não se usa conjugação verbal! Em vez de mudar as desinências verbais eles usam outro tipo de estratégia que envolve a utilização de um “troço” que eles chamam de “verbos auxiliares”. Desta forma, para ser bem-sucedido no aprendizado de inglês, você deve ser bem-sucedido na formação de um novo esquema: “quando fizer perguntas em inglês, o verbo fica imutável; utilizamos o verbo auxiliar 'do' se for presente, e 'did' se for passado”.

Percebe-se que mesmo nesse simples exemplo a formação de um novo esquema está vinculada a formação sólida de vários esquemas antecedentes, tal como um esquema sobre o que é “presente”, o que é “verbo”, o que é uma “interrogativa”, etc. Ou seja, os esquemas possuem uma forte natureza inter-relacional.


Polimatia = Esquemas em Múltiplas Áreas

Utilizando-se o conceito de esquemas como guia, nós podemos avançar uma nova definição de polimatia que será tanto mais útil para o nosso entendimento, como possivelmente estará mais próxima a etimologia da palavra (esquema funcionaria como um bom substituto para o termo grego mathema). Assim, chegamos na seguinte definição:

Polimatia é o desenvolvimento de esquemas poderosos em múltiplas áreas

Nessa definição, temos como qualificadores chave a multiplicidade e o poder A multiplicidade é inerente a tudo que leva o radical poli- e a poder entra como um qualitativo dos esquemas construídos. Poder aqui concerne à capacidade desses esquemas de serem funcionais, preditivos e/ou explicativos. É semelhante à utilização da palavra poder para designar modelos estatísticos, quanto maior o poder maior confiança você tem que tal modelo prediz ou explica algo.

No entanto, o fato de que o conhecimento é construído de esquemas fortemente relacionais parece ser esquecido quando a gente começa a se concentrar em unidades de análise mais amplas. Quando falamos em múltiplas habilidades, alguns fazem parecer que estamos falando de construções que são completamente diferentes: “você sabe jogar futebol e fazer poesia? Que exótico!".

Por que futebol e poesia parecem ser tão diferentes? Por que alguém possuir habilidades nessas duas áreas parece tão exótico e improvável? Pelos exemplos fornecidos, fica claro que mesmo uma pessoa bem-sucedida na construção de um esquema sobre “tempos verbais na língua inglesa” terá que ser bem-sucedida na construção de uma série de outros esquemas se quiser, de fato, aprender inglês. Quando você pensa em esquemas como unidade de análise, saber inglês - ou saber qualquer coisa - é na verdade, possuir uma constelação de esquemas robustos, bem integrados e bastante funcionais relacionados a um tópico.

Assim, a pergunta não é mais “por que alguém possuir habilidades nas duas áreas parece tão exótico e improvável”, e sim, por que é esperado que as pessoas desenvolvam esquemas relacionados a somente alguns poucos tópicos e por que transgredir essa “regra” causa tanto espanto?

A resposta a essas perguntas envolve muitos fatores, nesse trabalho vou me concentrar em três elementos que considero primordiais para o desenvolvimento de esquemas robustos em múltiplas áreas: (1) autoeficácia; (2) visão de mundo, e (3) custo de oportunidade percebido.


Autoeficácia

Autoeficácia é um termo técnico para o que conhecemos como confiança. Ter autoeficácia significa crer que você é capaz de produzir certo efeito ou de desempenhar certa tarefa que guarda alguma importância para você (ver Bandura, 1994). A percepção de autoeficácia tem uma ligação notória com o desenvolvimento (ou não) da polimatia. Para alguém atingir um alto grau de esquemas poderosos em múltiplas áreas, é esperado que a pessoa encontre obstáculos no caminho. Se a pessoa busca profundidade em uma área, ela deverá desenvolver miríades de esquemas, cada vez mais complexos, cada vez num nível mais profundo de abstração, e, por conseguinte, cada vez mais dependentes de outros esquemas antecedentes já bem construídos e robustos. Naturalmente, todo esse caminho leva tempo e demanda certas características como persistência e resiliência até a pessoa ser capaz de, em algum ponto, dizer: eu domino bem a área X.

Assim, fica patente que um antecedente fundamental para o desenvolvimento de conhecimento profundo é a autoeficácia. Em específico, a percepção de autoeficácia no que tange a capacidade de aprender. Isto é, para ser bem em alguma coisa, alguém ter que antes ter confiança que será capaz de aprender e dominar esta coisa.

No entanto, parecer haver dois tipos de comportamentos no que tange a autoeficácia para a aprendizagem. Certas pessoas tendem a só desenvolverem grande autoeficácia para número limitado de áreas enquanto outras detém um nível de autoeficácia bastante alto para qualquer área do conhecimento que já exista ou que venha a existir. Enquanto o primeiro grupo de pessoas tende a desenvolver e circunscrever sua identidade em torno de certa área ou domínio, e.g., “sou músico”, “sou advogado”, “sou médico”, outras pessoas têm grande aversão em amarrar sua identidade a apenas um grupo limitado de tarefas e competências, que geralmente se iguala à profissão dessa pessoa. Desta forma, proponho avançar dois tipos de autoeficácia no que concerne o aprendizado: (1) autoeficácia circunscrita e (2) autoeficácia geral. A autoeficácia circunscrita está necessariamente vinculada a uma área ou domínio, quando a pessoa sai dessa circunscrição, ela se sente “um peixe fora d’água”. Já as pessoas que detém alto grau de autoeficácia geral jamais são “peixes fora d’água”, eles são exploradores que se percebem como prontos e capazes para explorar qualquer território, por mais exótico que seja para eles. Assim, defino autoeficácia geral como:

Confiança em ser capaz de aprender qualquer coisa, em qualquer área, de forma rápida e eficaz, a despeito do quão difícil o tópico é considerado pela maior parte da sociedade.

Naturalmente, é de se esperar que a autoeficácia geral seja uma característica presente nos polímatas. Por sua vez, essa mesma autoeficácia geral deve estar relacionada com uma séria de crenças pessoais e visão de mundo específicas. Além disso, pressões e forças sociais podem levar as pessoas a se inclinarem para uma autoeficácia mais restrita, algo que parece ter ocorrido na sociedade ocidental a partir do séc. XIX, ver (Araki, 2015; Burke, 2011; Sagan, 2012). O que pode ter contribuído para uma diminuição do número de polímatas no mundo.


Visão de mundo

Uma visão de mundo se refere à orientação cognitiva fundamental de um indivíduo ou de toda uma sociedade. Essa orientação abrange sua filosofia natural, seus valores fundamentais, existenciais, normativos, seus postulados ou temas, suas emoções e sua ética.

Visões de mundo podem ser mais ou menos condutivas ao desenvolvimento da polimatia. Por exemplo, uma visão de mundo na qual alguém enxergue que o atingimento de grandes habilidades depende de um conjunto de esquemas bem construídos durante anos de treino é uma visão de mundo mais condutiva à polimatia do que uma visão de mundo de que diz que alguém ou nasce gênio na área X ou nunca chegará a desenvolver altas habilidades nessa área.

Proponho que um dos gatilhos fundamentais que indicarão se a pessoa adotará uma visão de mundo mais ou menos polímata se refere a como a pessoa encara suas oportunidades.


Custo de oportunidade percebido

Custo de oportunidade é um termo usado em economia para indicar o custo de algo em termos de uma oportunidade renunciada; isto é, o quanto alguém está “perdendo” por ter deixado de fazer algo e ter optado em fazer outra coisa. A questão da polimatia não tem como fugir da questão da escassez dos recursos e das escolhas que tomamos perante tal realidade. Um recurso obviamente escasso é o tempo. Porém, existe um recurso que seja talvez ainda mais escasso, que é a atenção humana (ver Csikszentmihalyi, 1988).

O que difere o polímata de qualquer outro não é tanto seu grau de inteligência ou talento inato, é como ele aloca o seu recurso mais preciso: sua atenção.

O polímata tende a ser grande gestor da sua atenção. Como ele deseja explorar diversos mundos e conhecer de verdade diversas coisas, ele sabe que precisa ter qualidade no seu aprendizado, assim, uma das primeiras habilidades do polímata e aquela que ele primeiro obtém maestria é a habilidade de aprender com eficácia. Aprender com eficácia envolve saber prestar atenção e ter foco, porém envolve perceber algo que é sistemático no mundo: o princípio dos retornos decrescentes. No caso da aprendizagem, esse princípio se traduziria no seguinte: quanto mais você aumenta uma dada entrada (ex., esforço, atenção ou horas de estudo) com o fim de obter um resultado, menor será o incremento resultante de um aumento numa dada entrada. Por exemplo, você pode estudar uma hora para uma prova e tirar nota 5, mas isso não quer dizer que se você estudar duas horas você tirará dez. O retorno é desproporcional ao investimento.

É importante destacar que a percepção desse princípio junto com uma alta inteligência pode levar a armadilha do diletantismo. Uma pessoa inteligente consegue muito rapidamente atingir um nível de habilidade mediana em qualquer perícia, enquanto que a maestria em qualquer uma dessas perícias demandaria um esforço absurdo. Assim, é muito sedutor para alguém de natureza polímata trocar maestria em uma perícia por competência adequada em diversas perícias. Essa também é uma das razões para escassez de polímatas.

Ainda assim, mesmo o diletante costuma perceber algo que o não-polímata ignora: a integração do conhecimento. Uma das formas de se enxergar o conhecimento como algo integrado é através do uso de esquemas como unidades fundamentais de qualquer perícia ou conhecimento. Outra forma, complementar a primeira, é enxergar que diferentes tarefas, experiências, disciplinas ou conhecimentos podem ser harmônicas e também podem se fecundar mutuamente. Por sinal, pesquisadores descobriram que essa visão de mundo - que envolve uma harmonização dos diferentes interesses de uma pessoa e a percepção de que uma disciplina não atrapalha a outra – é a visão de mundo compartilhada pelos gênios que impactaram profundamente suas áreas e até mesmo a civilização (Root-Bernstein, Bernstein, & Garnier, 1995; Root-Bernstein & Root-Bernstein, 2013). Dois exemplos bastante interessantes são Vladimir Nabokov e Albert Einstein. O primeiro escreveu sua mais famosa novela, Lolita, numa viagem para caçar borboletas, algo que ele fazia profissionalmente. O segundo repetidas vezes mencionou a importância da música e do violino nas suas descobertas científicas.

Naturalmente, esses grandes homens, e por que não, polímatas, deram um passo além do diletantismo, percebendo a necessidade do acúmulo de esforço e atenção contínua num dado grupo de conhecimentos, formulando e reformulando esquemas que resolveriam problemas específicos das suas áreas (como escrever de forma bela, e como decifrar o mundo em equações) de forma persistente, contínua, resiliente e propositada. Proponho que a equação de envolva todos os antecedentes da polimatia, mais uma visão geral pró-polímata mais um ambiente favorável mais oportunidades de crescimento e mais características de personalidade que também levem à maestria seja algo bastante raro, por isso o número reduzido de pessoas consideradas polímatas.


Aumentando o nosso escopo de experiências

Nessa seção, a última desse trabalho, vou tratar de como nós podemos fomentar a polimatia em nós, mesmo que não desejemos alcançar o status de um Einstein, Nabokov ou Da Vinci (porém isso é igualmente útil caso você tenha essas pretensões).

A experiência (que inclui percepção e testemunho) é uma das fontes primárias de conhecimento e é a base para o conhecimento que advirá da introspecção, da memória e da inferência (ver Murphy, Alexander, & Muis, 2012). Experiências vividas, em especial as que envolvem alta carga emocional e que são repetidas ao longo da vida (como rezar todos os dias), costumam deixar marcas profundas na personalidade de um indivíduo e podem mediar a forma como a pessoa virá a avaliar e apreciar o mundo. Uma amostra do poder da experiência é o fato de que cada um de nós pode facilmente obter toneladas de evidência anedotal sobre como é praticamente impossível convencer uma pessoa a abandonar uma crença, seja esta crença concernente a sua religião ou a um modelo político.

Tal primazia da experiência e a facilidade de que as pessoas têm de tornarem crenças baseadas em sua experiência pessoal em blocos praticamente indissolúveis da sua personalidade trouxe preocupação a alguns pensadores. Entre eles inclui-se Alexander von Humboldt, que proclamou que “a visão de mundo mais perigosa é a daqueles que não viram o mundo” (Die gefährlichste Weltanschauung ist die Weltanschauung derer, die die Welt nie angeschaut haben).

Humboldt estava preocupado em como algumas pessoas tendem a circunscrever seu repertório de experiências num espaço bastante limitado. Seguindo o conceito tradicional alemão da formação humana (Bildung), o homem só seria pleno se ele fosse capaz de experimentar e saborear (sappere) múltiplas categorias de experiência, quanto mais plurais e díspares, melhor. Obviamente, Humboldt era um privilegiado, que pôde arcar com diversas viagens exóticas durante sua vida. Ainda assim, sua ideia serve como um princípio norteador para uma visão de mundo polímata, uma visão de mundo que traz de volta o sentido etimológico da palavra saber, que compartilha sua raiz com a palavra saborear. Se a pessoa não tem a chance de saborear diversos gostos, as chances são de que seu paladar irá ficar bitolado. Uma das maiores contribuições da polimatia como visão de mundo é servir como contraponto e salvaguarda a uma visão de mundo bitolada.


Referências

Araki, M. (2015). Polymathic Leadership: Theoretical Foundation and Construct Development. (Masters Dissertation), Pontifícia Universidade Católica, Rio de Janeiro.

Bandura, A. (1994). Self‐efficacy: Wiley Online Library.

Burke, P. (2011). O polímata: a história cultural e social de um tipo intelectual. Leitura: Teoria & Prática, 29(56).

Csikszentmihalyi, M. (1988). Motivation and creativity: Toward a synthesis of structural and energistic approaches to cognition. New Ideas in Psychology, 6(2), 159-176.

Murphy, P. K., Alexander, P. A., & Muis, K. R. (2012). Knowledge and knowing: The journey from philosophy and psychology to human learning. 189-226. doi: 10.1037/13273-008

Peirce, C. S. (1878). How to make our ideas clear.

Peirce, C. S. (1974). Collected papers of charles sanders peirce (Vol. 5): Harvard University Press.

Piaget, J., & Cook, M. (1952). The origins of intelligence in children (Vol. 8): International Universities Press New York.

Root-Bernstein, R. S., Bernstein, M., & Garnier, H. (1995). Correlations between avocations, scientific style, work habits, and professional impact of scientists. Creativity Research Journal, 8(2), 115-137.

Root-Bernstein, R. S., & Root-Bernstein, M. M. (2013). Sparks of genius: The thirteen thinking tools of the world's most creative people: Houghton Mifflin Harcourt.

Sagan, C. (2012). Dragons of Eden: Speculations on the evolution of human intelligence: Random House LLC.

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