Leandro Karnal escreveu este texto muito interessante na sua coluna do Estação este domingo:
Dizem que o criador da expressão foi Cacá Diegues, em entrevista no Estadão. Patrulha ideológica referia-se à perseguição da esquerda a seus filmes. O pensamento patrulheiro ficou vasto e variado. Os militantes das rondas percorrem as ruas da internet e da imprensa. É uma forma de censura. Ela existe entre conservadores e esquerdistas, entre ateus e religiosos, entre apreciadores de carménère e de cabernet sauvignon.
Quando eu era jovem, alguns patrulheiros diziam que não se podia ler Gilberto Freyre. Era, claro, uma patrulha ideológica. A questão não era dizer que Casa Grande e Senzala deveria ser vista com ressalvas históricas. A postura era do índex inquisitorial: você não pode ler!
Reafirmarei sempre, em todos os lugares: um texto pode ser conservador e genial, como o de Edmund Burke ou o de Alexis de Tocqueville. Um texto pode ser de esquerda e conter conclusões fundamentais, como Pierre Proudhon ou Karl Marx. Texto bom é o que faz pensar. Não se trata de isenção, mas de reconhecer que a inteligência não assenta morada exclusiva em um setor do espectro político. O pensar abomina gaiolas. Importante: Karl Marx leu Adam Smith e pensou a partir dele. Marx não pode ser visto a não ser em diálogo com a visão do escocês.
Um patrulheiro dogmático é alguém que, em geral, compreende pouco de um tema. A deficiência é compensada pela retórica e pelo ardor do debate. O ataque é uma forma de disfarçar medo.
Pensar é complexo. Necessita esforço constante e direcionamento com foco. A reflexão precisa de dados e de análise. É uma mistura de esforço braçal e intelectual. Querem um exemplo? O simples conceito capitalismo traz uma imensa quantidade de leituras e pesquisas. O crescimento de uma economia urbana e monetária na Baixa Idade Média europeia em regiões como cidades do Norte da Itália e em Flandres já demanda uma biblioteca sólida. A ascensão da burguesia, a primeira globalização com as grandes navegações e o comércio mundial dos séculos 16 ao 18 são temas longos. A consolidação do capitalismo com a Revolução Industrial é algo para um ano intenso de leituras, no mínimo. Então chegamos aos grandes teóricos: Adam Smith, David Ricardo e Thomas Malthus. Por fim, se eu quiser avaliar as distinções entre teóricos como John Keynes e Ludwig von Mises, minha maturidade já encontrou ocupação.
O caminho é árduo. A alternativa mais fácil é lascar à queima-roupa: o capitalismo nunca deu certo! Matou milhões! Leia O Livro Negro do Capitalismo! Slogans são cômodos.
Invertamos o vetor. Estudar os socialistas utópicos e suas experiências, como Saint-Simon e Robert Owen, já ocupa meses de leituras. A obra de Marx, mesmo que destaquemos somente O Capital, é uma tarefa imensa. Etapa seguinte: pensar as experiências históricas da Comuna de Paris (1871), da Revolução Russa (1917), da Revolução Chinesa (1949) e a Cubana (1959). Há que se enfrentar distinções entre socialismo libertário e autoritário, teóricos do século 20 (como Rosa Luxemburgo e Gramsci), diferenças dos modelos iugoslavo, albanês, leninista, trotskista, chinês, anarquista... O genocídio provocado pelo Kmer Vermelho no Camboja tem uma biblioteca básica para vencer, quase nada em português. É muita coisa. Melhor disparar com ar douto: o socialismo nunca deu certo! Matou milhões! Vejam O Livro Negro do Comunismo! As frases substituem o debate, com a sutileza de uma divisão panzer e a profundidade de um pires.
Considerem um exemplo que irritará ao patrulheiro zeloso. Um aluno me pergunta: Che Guevara foi um assassino ou um herói? Respondo com calma: os dois. Matou pessoas, e participou de lutas armadas na América Latina e África para implantar o socialismo. Para alguns, a luta e a morte dele constituem heroísmo. Para outros, é o oposto. Outros exemplos de heróis com sangue? Churchill, admirável para alguns ingleses e assassino para povos do Oriente. Alexandre é uma estrela imensa no Ocidente, mas um monstro no atual Afeganistão. Solano López, Napoleão Bonaparte, Moisés, Carlos Magno: a lista é quase infinita. Todo líder político e militar tem uma duplicidade óbvia. O presidente Andrew Jackson é considerado o pai da democracia norte-americana em muitos sentidos. Também, provavelmente, um dos maiores genocidas do mundo indígena daquele país. Ele é um herói? Vai depender da sua identidade étnica, caro estudioso, da sua orientação ideológica e do seu empenho na pesquisa.
Eu sei: ao dizer essas coisas retirei a certeza moral que dá à patrulha ideológica a tranquilidade rasa. Tornei o mundo um caleidoscópio instável e introduzi um incômodo relativismo.
Certezas são próprias de pessoas que, tendo lido (ou escrito) um único livro, podem afirmar com segurança que todos os estudos comprovam sua ideia. Nós precisamos de humildade e método. Insultar é fácil e imediato. Odiar é um ópio. Vamos esperar o trio elétrico da patrulha passar e continuemos nossa conversa calma. Pensar dá um trabalho imenso. Um bom domingo a todos vocês.
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